domingo, 28 de setembro de 2008

Carmen




A Carmen e os seus olhos dormidos. A primeira imagem que me vem à cabeça quando penso na Carmen são seus claros olhos soturnos e lentos. Ao andar, anáguas de tempos imemorias conferem-lhe movimentos seculares que afastam as pessoas de sua frente com ondas de vento quente e cortante, como que mostando que o próprio destino dessas pessoas – infelizes transeuntes – é justamente o de deixar o caminho livre para que o que é vivo de fato aconteça.
Seu tronco é o pilar central do mundo e, com altivez de bailarina, sustenta-o como se tivesse nascido para fazê-lo. É perigoso pensar que, por conta de seus passos em pluma e sincronizados, a tarefa é fácil. Não caro amigo; desavisado amigo. Repara-lhe os olhos: acaso não vês o quanto de peso há sobre eles? Todo o peso do mundo, o peso da humanidade: o saber-se só. Tudo na Carmen é mágico. Tudo sobra, tudo falta e, assim, ela é completa.
A única pessoa do mundo que, possuindo dois vetores em direções opostas consegue, ainda assim, mover-se, é a Carmen. Ela pára e no entanto seu olhar continua caminhando, seguindo um rumo que é o próprio caminho que dali a pouco ela mesma cumprirá. Alinhava seu destino com seus olhos verdes e grandes. Longínquos.
A nós a Carmen não nos olha nos olhos: é em nossas almas que pousa seu olhar. Incontrolável devassa que em segundos nos deixa nus, ali, desprotegidos e ridículos em frente àqueles dois olhos que mais parecem dois mundos.

sábado, 27 de setembro de 2008

Metafísica

O que importa é ser
Sabendo-se nada
E compreender

domingo, 21 de setembro de 2008

Crônica sobre a Cegueira dos Blogueiros



Sabe o que eu acho interessante? Bem, é óbvio que você não sabe, nem imagina, aliás, nem deve ter a mínima vontade de saber . Ou de imaginar. Entretanto, é justamente esse o ponto da questão: o que leva uma pessoa socialmente sudável, com amigos cujos ouvidos estão sempre vagos para questionamentos e desabafos súbitos, com livros em cujas páginas há uma imensidão de palavras acalentadoras para qualquer existência insegura e desnorteada, além de uma bagagem cultural razoavelmente boa a ponto de lhe conferir discernimento suficiente entre o bom gosto e o ridídulo, enfim, o que leva uma pessoa nessas circunstâncias a se prestar ao ridículo de um blog pessoal?
Que arroubos pretensiosos o levam a pensar que o que ele pensa ou escreve é interessante para quem lê? Não sabe ele que por muitas vezes há pessoas que são divertidíssimas na vida real, mas que o real e o virtual possuem linguagens diferentes e até, como os tempos têm ido hoje, públicos diferentes?
Tudo bem, mas não são todos que querem ser engraçados, ou pelo menos parecê-lo. Claro. Você está certo. Mas a mesma lógica dos blogueiros engraçadinhos se aplica aos mais seriozinhos, politicozinhos e romanticozinhos: quem lhes garante que das coisas que escrevem alguma tem valor dentro dos seus respectivos campos, seja do saber ou do sentir?
Mas ninguém quer garantia de nada! Concordo, talvez ninguém queira garantia de nada e só escvreva para sentir-se mais vivo, pois a realidade já está esgotada de possibilidades viáveis de felicidade. Mas nem todos escrevem por fuga. Está certo, nem todos escrevem para fugir, mas então porque escrevem? Por que gostam. E gostar de algo é motivo suficiente para atolar o espaço virtual com lixo verborrágico? Hein, hein? Agora me responda você.
Sem resposta? Não, apenas acho que se as pessoas escrevem é porque gostam e não devem sentir-se inseguras ao publicar o que escreveram, até porque sempre há quem se identifique...
Aquela velha história do sapato velho pra meia furada! Mais lixo pra net...Veja bem, caro amigo, você percebe o que está acontecendo hoje no mundo? Todos famintos, pobres, sujos e maltrapilhos? Sim, tô. Percebe que cada vez que o homem estraga mais seu espaço e as coisas produzidas por esse espaço, mais e mais pessoas deixam de usufruir de um bem que devia ser universal? É, isso é bem verdade... Pois então, você não acha que não acontecerá o mesmo por aqui? Acha, por acaso, que esse mundinho virtual é infinito? Hã?hã? Ah, não tenho certeza, mas as comparações estão um pouco desproporcionais...aqui ninguém come ou veste-se, os efeitos são outros; há espaço pra todos...
E porque tantas reticências? Você fala com o máximo de certeza? Bem, não, eu nem sou muito entendido dessas coisas de computador...Então, você assume que o mundo virtual também pode ser limitado? É, pode ser... E que se ele for limitado, um dia ele pode se transformar num caos de pessoas sedentas por serem ouvidas? Também acho que pode ocorrer...E se tudo isso que eu falo for a verdade, o melhor não é evitar o futuro caos da maneira mais correta? Sim, mas que maneira é essa? Censurando? Não, amigo, sem censuras. É só criar consciência na cabeça dessas pessoas que acham qualquer importância no que escrevem. E como determinar o que é importante e o que é futilidade? Mas é essa a questão: educação virtual! Cada qual precisa ser consciente, precisa ser são o bastante para saber a importância do que escreve. Mas...Como?
Olha só, meu querido, eu estou apenas querendo ajudar, e acho que já me prolonguei demais. Penso que os textos deviam ser reciclados e que devia haver uma lixeira ao lado de cada blog - sabe aquelas lixeiras coloridas para lixo reciclável?, e se o leitor achasse aquilo um lixo, ele mesmo teria a oportunidade de jogar aquele endereço fora, e nem por acidente seu computador acessaria esse blog novamente. E digo mais, se cada blog fosse jogado no lixo tantas vezes, em comparação com os que o viram e não o jogaram fora, ele deveria ser automaticamente extinto da rede, como se tudo isso fosse um mecanismo de defesa, os glóbulos brancos do espaço virtual seríamos nós mesmos!
E agora, só porque não gosto de coerência, vou publicar essa nossa conversa que para nada, além de meneios nagativos e expressões incrédulas, irá servir.

Self-service


Que curioso é o self-service. Tenho a impressão de que além das comidas há a possibilidade de se escolher pessoas, cada qual com suas vidas e valores, nutritivos ou não. Vejo como essa fauna de humanos famintos, portanto vulneráveis, congregam-se em torno de um balcão que exala um odor oleoso de fritura e temperos quentes. Os seus olhos inquietos buscando as opções do dia, que travessa será a menos remexida?, que arroz parece ter menos perdigotos?, será isso peixe ou frango?, e essa carne, será alcatra? Tudo é muito engraçado e a fome é o norte.
Vejo entrar a senhora gorda, com os cabelos acaju e bem ressecados, que sempre olha de esguelha todos os pratos dos que já comem, precisa saber o que se tem para comer hoje, mas o balcão é demasiado longe e sua fome é curiosa. Passa por mim e deixa o cheiro de quem assiste muita televisão e reclama sempre que pode, de qualquer coisa que seja, apenas para que a notem. Repara nos pratos de todos, mas é incapaz de reparar em si própria.
Passa por mim e logo a esqueço. Quem entra agora é a velhinha manca, aquela que anda como uma moeda jogada ao chão aleatoriamente: seus joelhos não dobram e tenho a impressão de que a qualquer hora ela vai cair. E vai dar coroa. Essa, antes de servir-se, põe a bolsa em sua mesa de todo dia e segue quase que quicando para o balcão. Que medo que tenho dela virar com prato sobre mim.
Bem, não tinha percebido que o senhor que sempre é o primeiro a chegar ao restaurante já paga para sair. Sempre com seus ternos pastéis e óculos discretos é quase como se não existisse. Já está pelos setenta e, pelo seu mastigar melancólico, deve ser sozinho. Sem filhos ou esposa. Creio até que não lhe apeteça muito as senhoras: anda delicado. Nunca escutei sua voz, mas acho que poucas pessoas devem tê-la escutado também. Parece de poucas palavras. Poucas e fluidas. Todos os dias ele come salada de frutas depois do almoço. Passa o dia passeando pela Marquês de Abrantes, isso eu sei porque já me deparei com ele algumas vezes. Certo dia ele me olhou, mas não percebeu que eu o notara. Agora já não está mais aqui.
E a garota bonita?, também já está acabando de almoçar. Come pouco e com calma. Sei que gosta de pastel e de bolinhos de queijo e presunto. Come com vontade e aproveita o sabor de tudo. Durante muito tempo só a via de costas, com seus cabelos longos e lisos. É baixa, séria, e tem o olhar vivo, muito vivo. Há um peso que aos seus olhos impede de serem rápidos, pois olha com parcimônia e cautela, é como se em cada coisa sobre a qual debruçasse seu olhar deixasse um pouco de si mesma. Como deve ser forte. Já anda com as chaves de casa na mão.
Que estranho, a senhora maluca, a que usa o cabelo em rabo de cavalo sobre a orelha direita e um colar de pérolas feito de um plástico duro e branco, hoje se atrasou. Ela não gosta que se guarde lugar para outras pessoas. Ela fala mesmo. Mas todo mundo já a conhece: é maluca por unanimidade. Pendura sua bengala no espaldar da cadeira e segue para o balcão. Olhos grandes de quem se assusta com tudo. Olhos grandes mesmo, deve ser cansativo piscar com esses olhões. Certa vez eu lhe respondi sobre o que era aquilo que estava na travessa e ela me achou muito gentil e educado. Falou que pareço com um ator de televisão, de não sei que novela, não sei que canal. Nesse mesmo dia a vi entrando no meu prédio. Que coisa, a senhora doidivanas é minha vizinha. Mais um maluco no condomínio. Que curioso, parece que hoje não comerá aqui. Que engraçado, pôs tudo no prato e disse para a garota que pesa a comida que é para viagem. Que confusão, a garota diz que ela precisa passar tudo para a quentinha, ela passa e a comida fica toda desorganizada. Bem, agora a comida combinou com a faminta de pensamentos desorganizados.
Será ela sua avó? Sempre os dois almoçam juntos e não se parecem muito. Que garoto bonito. Pele rosada e cabelos louros encaracolados. Creio que ele deve se exercitar antes do almoço, pois sempre está com uniforme de quem joga qualquer coisa. Apesar de novo, parece conversar como gente crescida. Não é do Rio, estou seguro, pois já o ouvi falando para a senhora de uma viagem, acho que Minas, sim, era Minas. Acho que a senhora vive só e a companhia do garoto a faz feliz. Eles se dão realmente bem. Talvez não sejam parentes.
Aqueles dois são taxistas. Desinteressantes e alienados. Um parágrafo apenas basta. Só para constar.
Esse casal também está sempre por aqui. Ambos parecem bem práticos. Servem-se rápido e conversam sempre. Ela tira os sapatos para comer e ele mastiga rápido. Devem ser namorados, namorados maduros, pois ambos já passam dos quarenta. Ele tem um filho que certo dia veio buscar dinheiro, não sei nem porque ou para que, mas sei que cumprimentou a senhora de um jeito como se cumprimenta a amiga de um pai. Almoçam e ela também gosta de frutas.
Eu almoço com calma e gosto dos pastéis daqui, mas evito comê-los pois me dão azia. A gerente do restaurante, que fica no caixa, é simpática e tem olheiras. Deve ter filhos ou é solteira e cuida da mãe quando chega em casa. É muito calma e sempre sorri para os clientes. Não gosta que eu use barba, não que ela tenha dito que não gosta, apenas perguntou quando eu a faria. Sempre me oferecia balas mas, como nunca aceitei, parou de oferecer. Hoje me deu vontade de chupar uma bala, mas como fiquei com vergonha de pedir e como ela não oferecesse, acabei ficando sem bala.

Valsa



Palma e palma
Tua palma em minha alma
para, toca e olha
eu olho
teu olho fosco
mais que mistério
meu poço

Palma e palma
um pouco mais de calma...
...calma...
...calma...
reticências e suspiros
um beijo antes do tiro

Tira tua
minha tira
roupa toda
pouca coisa
devagar

O agora
É agora
que de tão vago
não se ancora

Palma e palma
então
já pelados
na cama
Palma
Sem calma
Sem alma

Kandinsky

Kandinsky
looking for the rabbit...